Ao tempo em que candidatos disputam para ver quem é mais beato; quem é mais contra a descriminalização do aborto (pelo histórico, ambos são a favor, mais os dois candidatos negam); ao tempo em e que a religião assume papel preponderante na eleição presidencial brasileira – e aproveitando que Mario Vargas Llosa foi vencedor do Prêmio Nobel de Literatura reli Peixe na água.
Memória
É um livro de memórias, talvez um dos menos comentados do escritor, com justiça laureado com o maior prêmio mundial de literatura.
Nele, com a destreza habitual, Vargas Llosa conta como foi a sua candidatura, em 1990, à Presidência do Peru, que ele perdeu para Alberto Fujimori, de triste memória (ele e alguns de seus assessores foram condenados e presos, acusados desde corrupção, passando por assassinatos e violação aos direitos humanos).
Faria bem se Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB) lessem o livro.
Eles veriam com que dignidade Vargas Llosa se portou quando seu adversário foi acusado de ser menos peruano do que ele, pela ascendência japonesa de Fujimori. Vargas Llosa deu declarações públicas e discursou contra a discriminação que pesava contra Fujimori. Proibiu seus partidários de fazerem ataques racistas e discriminatórios ao adversário, no que teve pouco sucesso, ele mesmo revela.
Eleições no Peru
Mostra como se portou quando quiserem transformar a eleição em uma guerra religiosa, com os adversários acusando-o de “ateísmo”. (Estranhamente, ele, um agnóstico, era visto como a salvação pela hierarquia católica peruana, acuada pelo avanço dos evangélicos, que se perfilaram, em sua maioria com Fujimori.)
E via, com horror, a disputa eleitoral “adotando uma fisionomia de guerra religiosa, em que os ingênuos temores, os preconceitos e as armas limpas se misturavam aos sujos golpes baixos e às mais pérfidas manobras, de um e outro lado, a extremos que beiravam a farsa e o surrealismo”.
Além disso, ele faz uma impiedosa análise do sistema político peruano, que serve para toda a América Latina e também para países de outros continentes.
Liberdade
Vargas Llosa não poupa nem mesmo o Liberdade, movimento criado por ele e alguns partidários. O Movimento Liberdade era radicalmente liberal com um conjunto de propostas “neoliberais”.
Relata como os oportunistas “com uma pequena corte ou séquito de parentes, amigos e protegidos” se apresentavam a ele “como dirigentes populares”, trocando de ideologia e partido como “quem muda de camisa”.
“Eram sempre eles que, depois das manifestações, tentavam carregar-me nos ombros – costume ridículo, imitação dos toureiros, de que cheguei a ser obrigado a defender-me a pontapés (…) Lidar com caciques, tolerar os caciques, servir-me dos caciques, foi coisa que jamais soube fazer” (pág. 165)
E viu, na campanha do segundo turno, “os níveis de imundícies em que tanto os meus partidários como meus adversários haveriam de incorrer”.
De bônus, intercalando capítulos com o relato das eleições, suas memórias mais antigas.
Vou transcrever alguns trechos do livro (edição de 1993, da Companhia das Letras). Leia a seguir.
Mobilização publicitária
“Depois, em janeiro de 1990, quando deveríamos ter retomado a campanha de idéias, vimo-nos a braços com a formidável mobilização publicitária de descrédito voltada para a desvirtuação de nossas propostas com ataques à minha pessoa, apresentando-me como pornógrafo, incestuoso, cúmplice dos assassinos de Uchuraccay, sonegador de impostos e vários horrores mais.” (pág. 364)
Pornógrafo
“Um delas [as manobras dos adversários] me apresentava como pervertido e pornógrafo: a prova disso seria meu romance Elogio da Madrasta, que foi lido inteiro, à razão de um capítulo por dia, pelo canal 7, do Estado, no horário de audiência máxima.” (pág. 408)
Cavalo de batalha
“Outro cavalo de batalha da Apra [partido do governo] era meu ‘ateísmo’. ‘Peruano! Você quer um ateu na presidência do Peru?’, interrogava uma clipe exibido pela televisão onde aparecia um rosto semimonstruoso – o meu…” (pág. 409)
Peruanos
“Estávamos discutindo [no comitê que funcionava em sua própria casa] quando ouvi, na rua, que os manifestantes haviam começado a gritar slogans de coloração racista e nacionalista – ‘Mário sim é peruano’. ‘Queremos um peruano’, além de outros insultantes – e, indignado, saí para falar com eles do terraço de minha casa, com a ajuda de um megafone. Era inconcebível que as pessoas que me apoiavam fizessem discriminação entre os peruanos em razão da pele. [...] Era possível ser peruano sendo branco, índio, chinês, negro ou japonês. O engenheiro Fujimori era tão peruano quanto eu.” (pág. 466)
Campanha negativa
“[Quando a sua assessoria tenta convencê-lo de que seria preciso uma campanha negativa contra Fujimori] Eu disse que só daria a minha aprovação à divulgação de informações comprováveis. Mas daquela reunião em diante pude intuir os escabrosos níveis de imundícies em que tanto os meus partidários como meus adversários haveriam de incorrer nas semanas subseqüentes.” (pág. 477)
Guerra religiosa
“A partir desse momento a luta eleitoral foi adotando uma fisionomia de guerra religiosa, em que os ingênuos temores, os preconceitos e as armas limpas se misturavam aos sujos golpes baixos e às mais pérfidas manobras, de um e outro lado, a extremos que beiravam a farsa e o surrealismo”. (pág. 483)
Impulsos obscuros
“Durante os dois meses de campanha para o segundo turno tentei resumir nossa proposta em algumas idéias, que repeti, incansavelmente, da maneira mais simples e direta, sob um invólucro de imagens populares. Mas as pesquisas semanais foram mostrando com clareza cada vez maior que a imensa maioria tomava sua decisão de voto por causa das pessoas e de impulsos obscuros, nunca por programas.” (pág. 174)
Circe
“Mas, naquele ponto da campanha, eu já sabia que no Peru são raros os políticos a quem essa Circe [bruxa] que é a política não transforma em porcos.” (pág. 408)
Aprendizado
“Muita coisa aprendi no processo eleitoral, e a pior delas foi descobrir que a crise peruana não devia ser medida apenas em termos de contrates, derrocada da instituições, aumento acelerado da violência; ao mesmo tempo tudo isso somado criara determinadas condições nas quais o funcionamento da democracia passava a ser uma espécie de paródia na qual os mais cínicos e espertos sempre levavam a melhor.” (pág. 504)